É plausível que tal solitário acabasse por morrer de exaustão, por entre os ecos da sua voz insensata, embora pudesse aproveitar a questão que ele próprio formulou e iniciar profícuas tarefas de natureza intelectual.
Defender-se-á que o acréscimo interrogativo demandado pelo monge constitui uma bela inutilidade. A próxima história, apresentada em resumo, visa justamente provar o contrário, mesmo que o não pareça.
Um camponês guardava duas vacas. Outro, que por ali passou, abriu o diálogo: «Comem bem, as vacas?» «Qual?» Com estranheza, o segundo camponês disse um pouco ao acaso: «A branca.» «A branca come.» «E a preta?» «A preta também.»
Após um longo silêncio, o inquiridor voltou à carga: «Dão muito leite?» «Qual?» «A branca.» «A branca dá.» «E a preta?» «A preta também.»
Depois de mais um mudo intervalo, o segundo camponês quis saber por que razão o interlocutor insistia naquela especificação bizarra. «Porque a branca é minha», foi a réplica. «Ah!... E a preta?» «A preta também.» (2)
Jurar-se-á ser possível viver feliz a todos os níveis sem colocar perguntas alegadamente supérfluas, em particular de carácter filosófico. Sim, talvez o seja. O que se perde, no entanto, além de uma eventual interpretação mais séria da vida, é o humor que a torna suportável quando em redor a solidez se quebra.
(1) Cf. Jean-Claude Carrière (2000), Tertúlia de Mentirosos, Lisboa, Editorial Teorema, pp. 279-280.
(2) Idem, p. 285.
Colhido no Divina Comédia, o extraordinário blogue de José Ferreira Borges.
2 comentários:
Não creio que o meu blogue seja merecedor de uma tal distinção, mas fico-lhe grato pela generosa referência.
Caro José Borges,
Porventura "extraordinário" é pouco para caracterizar tanta luminosidade, frescura de ideias e humor inteligente que percorrem os posts do seu blogue.
Parabéns!
Um abraço.
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