sábado, abril 12, 2008

A menina na cadeira de rodas



Um dia destes fui realizar a medição de uma casa. Centenária, paredes grossas, numa vila interior e pobre, longe da cidade. Recebeu-nos uma miúda magricela, com cinco ou seis anos, segurava um pequeno gato branco pelo rabo. A mãe cumprimentou o meu cliente, seu senhorio, e sorriu para mim. Começamos o trabalho. A casa era fria, estava limpa, mas sentia-se o cheiro da pobreza. O cheiro da interioridade.

Apareceu outra filha, portadora de uma deficiência profunda, conduzida pela mãe numa cadeira de rodas. Talvez oito anos. Uma mão mirrada, a perna engessada - "fez mais uma operação à perna", explicava a mãe. Enquanto tentava articular algumas frases, a menina sorria mostrando os dentes tortos, a boca enviesada. A irmã pouco respondia, brincava com o gato branco. A mãe beijava a filha da cadeira de rodas. Acariciava-lhe o cabelo curto.

Conversei um pouco com elas. Disseram os nomes e explicou-me a penosa situação dela e da filha deficiente. “Tenho uma meia na perna”, dizia a menina apontando para o gesso. Mostrou-me um livro. Eu disse que era bonito. Ela atirou-o ao chão. A mãe beijava a filha. Apanhei-o e tornei a dar-lho. Conversámos mais um pouco e continuamos as medições. A menina na cadeira de rodas chamava-me. Dizia que tinha uma meia na perna. Sorri e tornei a falar-lhe. Atirou novamente o livro ao chão. Apanhei-o. Continuamos as medições.

Quando acabamos, despedi-me da família. Desejei que Deus as abençoasse, que a menina na cadeira de rodas ficasse bem. A outra filha corria atrás do gato branco. A menina paralisada já não sorria. A mãe beijou-a. O pequeno gato branco tinha fugido novamente.

Com os olhos a brilhar, entrei no carro. Percebi o enorme barulho que o silêncio daquelas despedidas faz. Roguei a Deus que continuasse a manifestar a sua graça naquela mãe e nas suas meninas.

3 comentários:

Viviana disse...

Triste, tão triste!

Oh, se eu pudesse e estivesse na minha mão... mudar a dôr e a tristeza de todas as crianças que sofrem por esse mundo fora!...
eu o faria.

Um abraço

viviana

Tinoca Laroca disse...

são situações como essa que me fazem estar cada vez mais intolerante com a igreja e suas teologias rigidas, hipócritas e erradas...
Se que incutem as bençãos sobre bençãos e etc. financeiras e resoluveis e etc., que Deus seria esse que deixa ocorrer estas situações?

Sim, creio em UM DEUS, mas UM DEUS JUSTO, que não faz distinção de ninguém como promete a bíblia...

E nós temos o dever de amar e levar uma carícia, um olhar, um afecto a estas pessoas que sofrem...

Lendo as tuas palavras consegui sentir o aperto do teu coração ao despedires-te e o sentires que de alguma forma te sentiste hipócrita nas queixas do dia-a-dia, perante o dia-a-dia desta família...

GOD BLESS YOU,
T.

Jorge Oliveira disse...

Muito triste Viviana,
Deus sabe todas as coisas.
Compete-nos orar e ajudar.
Outro Abraço



É isso mesmo Tinoca,
Apanhaste mesmo o que eu senti naquele momento e que continuo a sentir. Aperto no coração.
Tenho orado por esta família.
Abraço forte.