segunda-feira, março 17, 2008

"Traçar uma picanha suculenta"

"Descumpro a promessa de sempre fazer o melhor. Estou consciente de que vez por outra preciso relaxar. Não vou viver sob o imperativo da excelência. Quero rabiscar textos meia-sola; correr sem precisar chegar na frente; vestir calça puída, camisa desabotoada e chinela de borracha.

Descumpro a promessa de só comer alimentos saudáveis. Não vou reprimir o apetite; esporadicamente hei de traçar uma picanha suculenta e terminar o almoço lambuzado de torta de limão.

Descumpro a promessa de sempre ser bonzinho. Quando estiver correndo sozinho, quero xingar quem quiser e dizer poucas e boas em discussões imaginárias. Vou aprender a soletrar “n –a – o– til” quando me pedirem o que não puder fazer.

Descumpro a promessa de não escandalizar. Não vou adequar-me às expectativas dos religiosos adoecidos que se horrorizam com qualquer coisa. Não quero representar personagens que agradam o status quo.

Descumpro a promessa de viver alegre. Desejo independência para curtir meus desassossegos sem culpas. Quando der vontade de chorar, chorarei; quando bater a saudade, escreverei poemas muito tristes; quando precisar curtir a solidão, sumirei.

Descumpro a promessa de conquistar uma maturidade adulta. Quero sentir o gosto de conversar bobagens e falar besteiras novamente. Vou permitir que o menino que vive escondido em mim apareça. Vou preferir a conversa fiada dos adolescentes aos colóquios chatos dos velhuscos.

Descumpro a promessa de impactar o mundo. Não terei a menor pretensão de abalar coisa alguma. Minha ambição será viver com leveza e doçura ao lado de pessoas despretensiosas. Abro mão de ser relevante.

Descumpro a promessa de fazer valer cada minuto da vida. Quero experimentar coisas pouco importantes como caminhar perto de meus amigos. Pretendo provar gostosamente até os momentos que não terão nenhum desdobramento para o futuro da humanidade.

Descumpro a promessa de fazer discípulos. Derramarei os conteúdos de minha alma quando escrever e pregar sem preocupar-me se terei seguidores. Aprendo tardiamente que ninguém converte ninguém – só o Espírito conduz à verdade!

Descumpro a promessa de mirar nas estrelas para alcançar o topo das árvores. Não vou empinar o nariz, alucinado com projetos mirabolantes. Quero andar com a cabeça baixa e ver a relva no rés-do-chão; quero olhar ao derredor e encarar os meus amores.

Descumpro a promessa de não me contaminar com as artes menos eruditas. Vou assistir comédias melosas com final feliz; escutar cantores da velha guarda e ler biografias de gente que arrepiou os moralistas.

Descumpro juras antigas porque de repente acordei. Com tantas promessas esqueci de viver.

Soli Deo Gloria."


In: Ricardo Gondim

4 comentários:

Lou H. Mello disse...

Ao que respondeu o irmão ortodoxo: é uma pena, ele ia indo tão bem enquanto cumpria todas nossas leis. Fazer o que? Vamos excomungá-lo já.

Jorge Oliveira disse...

Oi Lou,
Os ortodoxos têm alguma coisa contra as picanhas suculentas?

Martuxa disse...

Fenomenal!
xxx

Vilma disse...

Muito bom... degustei tudo! :)